Resistência, desespero ou uma amostra de felicidade

Texto e foto por Taiana Branches

O ano era 1999, eu estava grávida e viajava de carro no Estado de Mato Grosso do Sul, pra onde havia me mudado. A estrada atravessava uma área de queimadas, e jamais vou esquecer da cena da terra em chamas, onde o ar faltava, a nuvem de fumaça engolia tudo, da terra saiam ondas de calor em fios macabros e era impossível não pensar no inferno. Não era uma paisagem curta e passageira, eram quilômetros e quilômetros de extensão que pareciam não ter fim.

Alguns sinais de casas, uma ponta de telhado aqui e ali se faziam visíveis, como sutis referências civilizatórias e eu, apavorada, só pedia que meu filho nascesse com saúde num mundo belo, naquele estado que era e é onde fica boa parte da maior área de terra inundável do planeta, o Pantanal, o maravilhoso Pantanal. Aquilo tudo – que era novo pra mim – me era apresentado como um “fenômeno normal da época”, e eu tentava me acalmar enquanto meu nariz sangrava e os hospitais ficavam lotados de bebês com dificuldades respiratórias.

Naquele mês, tiveram dias em que eu não enxergava a casa da frente na rua onde eu morava, e era muito assustador. Esse “normal” não é pra mim, eu pensava. Eu ouvia as conversas eufóricas sobre áreas novas para pastagens ou plantios de soja promovendo a riqueza das cidades, trazendo progresso, num universo onde não haviam limites para o desejo de enriquecer e o conselho era não manifestar contrariedade com estranhos, pois “ todos andam armados”.

Eu só pensava em voltar pra “minha terra”, como se a terra não fosse a mesma, como se o Sul não fosse o berço daqueles “homens visionários” que colonizavam o norte do país, os “redentores da fome no mundo”, o “Brasil celeiro do mundo”. Meus pensamentos iam de indígenas que se suicidavam em série a poucos quilômetros dali, e o problema ‘urgente’ de comprar um carrinho para o meu bebê (era o motivo da tal viagem) que felizmente chegou com saúde, afinal, rinites e sinusites recorrentes são “coisas normais” , “uma ‘pequena’ cirurgia para extrair amígdalas e adenóides vai ajudá-lo a respirar e dormir”, disse o médico que o operou aos sete anos. E seguimos. (…) Da educação que recebi nas melhores universidades públicas desse país fui construindo o fio que liga todos esses pontos na grande lógica capitalista do mundo em que vivemos.

Hoje, quando vejo a cena da Floresta Amazônica em chamas desabando sobre a cidade de São Paulo eu sei o que há vinte anos atrás eu apenas pressentia em angústias. Eu sei da morte que isso representa, uma morte muito além da morte imediata dos pássaros e tantos animais carbonizados. Quando se extraem árvores frondosas da floresta – essas que rendem um bom dinheiro – a água do solo diminui, todo o entorno fica vulnerável, inflamável, e o fogo se alastra com voracidade.

Dias atrás, latifundiários anunciaram o “dia do fogo”, promovendo focos de incêndio ao longo da BR 163, na Amazônia. Hordas de homens bestiais promovendo a morte que ontem chegou nos céus de São Paulo, mas que já estava lá, há vinte anos atrás, naquela estrada do Mato Grosso do Sul, e está também nas latas de óleo onde preparamos nossa comida. É um modelo de desenvolvimento que não exclui, mas inclui todos num laço violento que provoca muita dor.

Meu filho já é um homem feito, eu sigo desejando um bom futuro, num mundo belo, só que já não há mais pra onde “fugir”. É preciso dar um basta, pela vida, que pode – e vai – continuar. Mas com que ar? Com que céu? Com que histórias familiares se o que plantamos com esse modelo do agronegócio são doenças? Acordem. Basta de governos que promovem a morte. Basta.

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