Liberdades em disputa

Por Luís Felipe Miguel

Uma velha pretensão da direita é se apropriar da liberdade. A multinacional (sediada nos Estados Unidos) dos estudantes reacionários se denomina “pela liberdade”. Nas redes sociais, o adjetivo “livre” depois do nome de uma universidade indica quase sempre que se trata de um grupo de direitistas militantes – “USP Livre”, “Unicamp Livre”, “UFRJ Livre”. Ideólogos ultraliberais se reúnem a cada ano no “Fórum da Liberdade”, que gerou suas próprias imitações, como o “Fórum Liberdade e Democracia”. Os mais extremados, que apregoam uma organização social de tipo neofeudal, em que não há Estado e o poder político é baseado numa rede de contratos privados, atribuíram a si mesmos o nome de “libertários”.

Não é de hoje. O capitalismo selvagem é o “livre mercado”; o bloco estadunidense durante a Guerra Fria era o “mundo livre”; a propriedade privada foi rebatizada como “liberdade econômica”. E o pensamento liberal, do século XVIII em diante, constrói a ideia de uma oposição imanente entre liberdade e igualdade. Se a esquerda defende a igualdade, logo está deixando a liberdade de bandeja para a direita.

A experiência do socialismo autoritário também ajudou. Se a liberdade não estava nos países do bloco soviético, certamente estaria nos seus antagonistas.

Assim, os grupos “livres” e “pela liberdade” se julgam no direito de advogar teses autoritárias e defender alegremente a repressão a seus opositores, uma vez que, sendo de direita, têm seu caráter “libertário” garantido. Na verdade, todos os seus grandes ícones revelaram simpatia pelo autoritarismo, desde Ludwig von Mises, que escreveu que o fascismo “salvou a civilização europeia”, até Milton Friedman e Friedrich Hayek, que apoiaram a ditadura de Pinochet no Chile. De fato, quem lê Hayek, por exemplo, logo percebe seu desprezo pela democracia, que pode ser um obstáculo à “liberdade”. Mas lendo com mais atenção percebe-se também que essa “liberdade” se resume ao livre mercado. Para que o mercado funcione como ele deseja, muitas liberdades – como a liberdade dos trabalhadores se organizarem em defesa de seus direitos – devem ser eliminadas. Muitos desses grandes entusiastas da liberdade defendem sem rodeios medidas como o banimento dos sindicatos.

Na história do pensamento liberal, essa paradoxal combinação entre império da liberdade e governo autoritário nasce da percepção prevalecente de que a igualdade pertence à esfera pública e a liberdade, à privada. A formulação canônica aparece em Benjamin Constant, na célebre diferenciação entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, no começo do século XIX. A autonomia coletiva, que seria o valor perseguido na polis grega, é desprezada como pouco relevante para os modernos. A participação política comprometeria o tempo necessário à dedicação aos afazeres particulares que os modernos prezam. Nossa liberdade é a liberdade de guiarmos nossa vida na esfera privada, sem interferência indevida dos outros e, particularmente, do Estado. Um Estado autoritário, mas “mínimo”, seria benéfico à liberdade.

Ou seja: em relação ao governo, os modernos não desejam participação, mas limitação, a fim de que sua realização privada não seja comprometida. Mas cabe lembrar que a esfera privada sempre foi o espaço de florescimento das desigualdades, ao passo que nas arenas públicas vigoraria a igualdade convencional entre todos os cidadãos. Temos aqui o desprezo pelo valor da igualdade – que leva, é claro, a uma situação em que a “liberdade” obtida é ótima para quem tem recursos para usufruir dos prazeres da vida privada, mas muito penosa para quem não os tem.

Uma derivação deste raciocínio surge na distinção, igualmente célebre, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”, tal como formulada por Isaiah Berlin. Enquanto a primeira se refere à ausência de coerção externa, em particular a coerção estatal, nas decisões sobre a própria vida, a segunda envolve a participação no autogoverno coletivo. Em particular, Berlin recusa a ideia de que a privação material implica em redução da liberdade. Não seria possível afirmar que a falta de recursos, por impedir que quem a sofre seja capaz de alcançar seus propósitos, implique em restrição à liberdade; ele argumenta que essa compreensão “depende de uma teoria social e econômica particular acerca das causas da minha pobreza ou debilidade”. Ao recusar essa “teoria social e econômica particular”, Berlin adensa a separação entre política e economia que é um dos principais pontos cegos da doutrina liberal.

Berlin não nega valor à liberdade positiva, que reconhece como um ideal digno de respeito. Mas confere uma “primazia lexicográfica” à liberdade negativa: mesmo um grande incremento da liberdade positiva de muitos não justifica a redução da liberdade negativa de um só. Com isso, o autogoverno – a esfera da igualdade de direitos – fica limitado pela intocabilidade da autonomia individual privada, isto é, da esfera em que o exercício da liberdade é condicionado pelos recursos diferenciados disponíveis para os indivíduos. Em particular, qualquer política redistributiva torna-se dependente da aceitação voluntária por parte dos controladores da riqueza, já que uma transferência compulsória para os mais pobres implicaria a coerção externa que é vetada.

Uma versão menos sofisticada do argumento aparece na obra de Hayek. Combatendo a noção de que há necessidade de uma base material mínima para o gozo da liberdade, ele diz que a liberdade no sentido positivo não é liberdade; “não passa […] de um sinônimo de poder ou riqueza”. O resultado de todas essas construções teóricas é afastar por completo o sentido da liberdade das condições efetivas para ser livre. É necessário enfrentar a simplificação hayekiana e entender que, embora liberdade não seja sinônimo de poder ou riqueza, certamente não é independente de poder e riqueza.

Uma tradição filosófica diferente opera não com a dicotomia liberdade/igualdade e sim com a dicotomia liberdade/necessidade. Somos livres apenas no momento em que superamos a necessidade. Com isso, fica claro que, da mesmo forma como não há liberdade quando estamos submetidos à vontade de alguém, não há liberdade quando estamos submetido à privação. Ela também nos impede de definir livremente nossas ações. E, portanto, a igualdade não é a inimiga, mas uma base para a liberdade de todos. Sem isso, “liberdade” pode se configurar numa bandeira que não apenas é vazia de sentido, mas serve para encobrir múltiplas formas de opressão.

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