Setembro amarelo: Últimas palavras

Por Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista*

Sócrates havia tomado cicuta e já sentia os primeiros sintomas de adormecimento por seu corpo. Os discípulos ao seu lado esperavam pelas últimas palavras do velho sábio. Se a vida é uma história, ela depende de como nós a contamos e de como ela será recontada pelos que nos sobrevivem. Daí o valor que atribuímos ao último capítulo. A morte solitária, particularmente a morte violenta, era um pesadelo para os antigos porque, neste caso, perdiam­-se também suas últimas palavras. Aquele que é colhido pelo acidente deixa uma espécie de dívida em aberto, sob forma de palavras por dizer, que o levará a voltar como fantasma. No cerimonial da grande morte, que vigorou até o século XVIII, e que antecedeu seu silenciamento em hospitais, cercado de invisibilidade e vergonha, alguém prestes a morrer reunia seus entes queridos, fazia declarações públicas e, sobretudo, meditava a céu aberto sobre o que teria sido sua existência. Qual é a causa que nos concerne enquanto viventes?

Foi, portanto, com relativa ironia, e não sem algum constrangimento, que os alunos de Sócrates ouviram: “Críton, devemos um galo a Asclépio, não te esqueças de pagar esta dívida”. A formulação é irônica porque Asclépio, pai mí­tico da medicina grega, senhor dos remédios e da cura, não pôde salvar o inventor da filosofia. Inaugura-se aqui uma tradição que pensa a mensagem do suicídio como ato que subverte as causas que o tornaram possível. Afinal, não estaria a cidade grega, que condenou Sócrates ao suicídio, eternamente em dívida para com ele? Ao pontuar a dívida com o pai da medicina, ele se coloca também no lugar daquele que se sacrifica pela cidade, pelo seu invento primeiro e maior: o pharmakon, termo que significa em grego, simultaneamente, veneno que cura ou mata e palavra que salva.

A carta de suicídio é o testemunho material de um acontecimento inacreditável. Quando alguém tira a própria vida, isso parece ofender não apenas uma crença específica na soberania da vida, na relevância da existência, mas o próprio princípio da crença, ou seja, essa leitura da vida que mantém unido o arco temporal que sai do presente, retorna ao passado e se projeta como realizado no futuro. Isso explicaria por que a maior parte das religiões condena impiedosamente o suicídio, mas também por que, estatisticamente, ateus suicidam-se menos do que crentes. Como se ensina aos psicoterapeutas iniciantes. Diante de alguém com ideação suicida, não vale a pena investir demais na proposição de motivos ou razões para viver, como se tivéssemos que inocular no outro uma narrativa de esperança, baseada em conteúdos de dignidade. O que está em questão é o circuito das crenças, sua gramática, não sua semân­tica. Por isso, há casos nos quais é decisivo reconhecer a dignidade ética do suicídio.

A carta de suicídio não só atesta a realidade do fato, mas interfere no luto infinito dos que ficam. Todo luto tem um tanto de impotência, pois sentimos que não conseguimos amar o outro suficientemente, caso contrário, ele não teria ido embora. Por outro lado, se ele se foi é porque não nos amava tanto assim. Culpa por tê-lo deixado ir e raiva porque ele nos deixou compõem assim um par de afetos em torno do qual o trabalho de luto investiga o que se foi naquela perda. Quando reconstruímos o molde e o símbolo do que se perdeu, o luto acaba. Aquele que se foi prosse­guirá jornada dentro de nós, como um traço da saudade e memória, como parte de nós e de nossa história. No caso do suicídio, esse processo torna-se mais intenso. O convívio entre remorso e ódio é mais agudo. A forma reduzida do outro terá que incorporar a própria decisão do suicídio.

Alguns indígenas brasileiros pensam que os mortos têm inveja dos vivos. Esse efeito de sucção ou de atração para o mundo dos mortos é semelhante ao medo ocidental dos fantasmas e espíritos que viriam nos buscar. Ao de­liberadamente escolher ir embora, aquele que tira sua própria vida cria uma espécie de paradoxo, pois indo sem ser forçado ele fica e se repete como mensagem permanente. O suicídio testemunha o fracasso de nossa capacidade de mantê-lo entre nós e, ao mesmo tempo, uma traição. Frequentemente, esse fracasso é antecipado pelo que vai aos que ficam, preparando-nos assim para nossa própria finitude e mortalidade. Ainda que saibamos, cognitivamente, dessa limitação, quer possamos atribuí-la à enfermidade, à insuficiência médica, ao envelhecimento, aos acidentes da existência, a morte de alguém sempre evoca esse primeiro momento de culpa e de fracasso. Como disse Torquato Neto, em sua poesia de despedida:

De modo que FICO

sossegado por aqui mesmo

enquanto dure.

Se os vivos, em geral, lutam para ficar, mas acabam indo, o poeta decide ficar deixando uma carta de permanência. Como um psicanalista que encerra a sessão dizendo “ficamos por aqui” e deixa o paciente na dúvida se é para ir ou para ficar, o autor diz que fica, em suas palavras, ao mesmo tempo em que diz que vai em seu ato. A sua presença torna-se, assim, signo de sua ausência sossegada.

* Texto publicado originalmente no site da Revista O Continente.

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