O bullying homofóbico nosso de cada dia

Por Charles Berndt, doutorando em literatura pela UFSC . Artigo publicado originalmente na coluna Lorca do jornal eletrônico Vício Velho

Há alguns anos temos discutido bastante – em jornais, revistas, livros, em progra­mas televisivos, em filmes etc. – sobre algo que se consolidou chamar de bullying. A palavra vem do inglês, obviamente, e tem sua origem a partir da palavra bully, que significa brutal, tirano. Assim, podemos compreender o bullying como uma prática constante e repetida de tirania, brutalidade, violência e agressões contra um indi­víduo. Em português, podemos pensar o bullying a partir de outras palavras: bater, excluir, provocar, implicar, ignorar, roubar, amedrontar, ameaçar, ridicularizar, humi­lhar, intimidar etc. A grande questão é que o bullying é, de fato, algo que se repete, não acontece apenas uma vez, mas é uma prática constante que persegue e vitima inúmeras pessoas. Geralmente, pensamos e discutimos sobre o bullying que acontece nas escolas, mas ele pode acontecer também no ambiente familiar, na universidade, no trabalho, entre outros lugares. Trata-se de violência e, em inúmeros casos, tem relação com os preconceitos que existem em nossa sociedade: machismo, misoginia, racismo, homofobia, gordofobia, xenofobia etc.

Na semana passada, assisti a um filme e foi desde então que voltei a pensar e a refletir sobre o bullying, sobretudo sobre o bullyinghomofóbico. Este filme, que se chama Marvin e foi dirigido por Anne Fontaine e lançado em 2017 na França, tem rodado no Brasil em cinemas específicos, sobretudo em mostras de cinema fran­cês. Assim, Marvin é um jovem estudante de teatro, nascido no interior da França, numa família humilde, que desde muito pequeno convive com todo tipo de insultos, agressões, violências físicas e verbais, no ambiente escolar e familiar, principalmente. O bullying sofrido por Marvin tem relação com a sua identidade, com o seu modo diferente de ser e de se portar. Em suma, como grande maioria das pessoas LGBT no mundo, Marvin sofre violência antes mesmo de se dar conta sobre sua sexualidade, antes de saber o que é ser homossexual. Ele é tachado de mulherzinha, de veado, de invertido por ser diferente dos outros garotos.

O interessante do filme dirigido por Anne Fontaine é que ele nos mostra o quanto Marvin, já adulto, ainda sofre com as lembranças das violências e agressões que sofria na infância. É como se ele não conseguisse superar aquela dor. O teatro e a escrita surgem, assim, em sua vida, como uma porta de escape, uma maneira terapêu­tica de lidar com seu trauma. Então, com ajuda de alguns amigos, entre eles a atriz Isabelle Huppert, que no filme interpreta a si mesma, Marvin vai escrever e produzir uma peça que ficará muito famosa em Paris, chamada Quem matou Marvin Bijou, em que revisita o seu passado, a relação difícil com a família que sempre o excluiu e a sua vivência escolar nada agradável. Marvin decide, ainda, adotar um pseudônimo: Martin Clement. O sobrenome Clement vem da diretora da escola, sua amiga e única pessoa que durante anos o apoiou e incentivou a estudar.

A negação do seu nome de batismo, do nome que a sua família escolhera para si, mostra que Marvin, de alguma forma, não só não superou o bullying que sofreu, mas a sua própria não identificação com seus familiares, ele é e continua sendo, na família e na sua cidade natal, um peixe fora água, alguém que foi e continua sendo excluído. Em um ato de vingança e rebeldia, ele próprio, então, decide negar sua origem. No fim do filme, temos a impressão de que Marvin consegue ter uma visão melhor de tudo que passou e talvez seu espírito comece a se libertar daquela dor, daquela raiva, daquelas lembranças que o perseguiam durante anos.

Recomendo vivamente que assistam a este filme, que me fez voltar ao meu próprio passado, ao bullying que também sofri na infância, sobretudo na escola, por ser, como Marvin, diferente. É algo que a grande maioria das pessoas gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais sofre em suas vidas. Evidentemente, cada caso é um caso e cada pessoa lida com isso de uma forma diferente. De qualquer modo, não dá para deixarmos de repudiar e combater essa forma tão cruel de violência, de exclusão, de discrimina­ção. Somente com políticas públicas que esclareçam e combatam a homofobia e o preconceito de gênero, é que aos poucos conseguiremos vencer esta batalha, estas histórias tristes que muitas vezes tiram a vida de inúmeros indivíduos. O bullying em muitos casos provoca o suicídio e precisamos conversar a respeito disso, precisamos falar sobre isso nas escolas, em nossas casas, em nosso ambiente de trabalho. Nin­guém merece sofrer violência e agressões por conta da sua sexualidade, da sua cor de pele, da sua aparência, da sua origem social etc.

Lembro-me, por fim, do filme Prayers for Bobby, baseado em um livro homô­nimo, que fala sobre isso, sobre o bullying homofóbico e o preconceito contra homossexuais, muitas vezes vindo da própria família, causando o desespero e a morte de muitas pessoas. Mas, a verdade é que ninguém está só. Todos nós, que de alguma forma passamos por isso, estamos conectados e felizmente a vida nos mostra que vale a pena lutar, persistir e construir um mundo mais justo, mais igualitário, mais fraterno. Neste mundo tão confuso, tão perturbado, há sempre lugar para o amor, que certamente é mais forte do que o ódio. Despeço-me, por hoje, sugerindo alguns vídeos, documentários e cenas de filmes, disponíveis no Youtube – E se fosse comigo?, Não gosto de Meninos, Leve-me para sair, Prayers for Bobby –, que podem contribuir nesta reflexão e nos auxiliar em nossas lutas diárias, a enfrentar e desconstruir essas violências e agressões que continuam presentes na vida de muitas pessoas, esse bullying nosso de cada dia.

 

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